Mind the gap
Era final da manhã de sábado, o
momento em que acabava o rito/maratona iniciado na sexta-feira: sair da aula >> encontrarem-se >>
“oi!” >> “hi, little stuff!” >> metro-casa (ou metro-cinema-casa),
pizza >> “vamos dormir, temos de acordar cedo” >> “está passando
algum jogo da NBA?” >> sexo >> dormir finalmente >> depois
acordar >> carinhos >> risadas >> sexo >> atrasarem-se >>
banho >> café da manhã >> metrô >> ele para sua aula >>
ela para sua vida.
Depois seguiam em sentidos opostos,
após despedirem-se na plataforma da estação. Ele esperava ela embarcar, “ladies first”, sempre repetindo a máxima.
Quando o trem dela se aproximava, ele a beijava e ficava ali do lado de fora do
trem com aquela cara de cão sem dono, embora ela não tivesse propriedade
alguma.
Naquele dia, porém, o trem dele
chegou antes e ela insistiu para que ele embarcasse primeiro, “você está atrasado”. Ele sempre estava
atrasado. Ele não argumentou e aceitou a sugestão dela. Ela o beijou, ele a olhou com aquela cara de sempre e ela se virou para
o outro lado da plataforma, mal ele colocara o pé dentro do trem. Não foi um gesto pensado.
Sentiu o vento manjado-nosso-de-todo-o-dia produzido pela partida
daquele trem. E ele reverberou dentro dela e a fez notar aquele pequeno vão
que havia em seu peito. Ficou atônita com aquilo, num estado de confusão mental
e achou por bem sentar-se até que seu trem viesse.
Sua mãe a ensinara a recapitular todas as ações anteriores à consciência
da perda de algo a fim de que pudesse se lembrar do exato momento da perda. E procurando
uma razão para aquele sentimento, começou a recapitular. Não se sentia como
quem havia perdido algo (não ainda), mas como não sabia o que fazer, recapitular
pareceu-lhe apropriado.
Enfim, repassou o primeiro parágrafo inteiro e não encontrou nenhuma
alteração no script. No segundo parágrafo, encontrou a falha: dessa vez era ela
que estava sozinha naquela plataforma. Mas como fora justamente aquela
alteração que desencadeara a percepção do vazio, resolveu ir para um outro
nível e iniciou o recordatório mental de todas as sextas daquele ano em que
estiveram juntos. “Nossa, já um ano?” – talvez tenha dito em voz alta, dado o espanto. E lembrou de todos os outros momentos desde as
primeiras trocas de olhares libidinosos na biblioteca da faculdade, onde se conheceram. E olhando para tudo com atenção percebera alguns pequenos hiatos, quase imperceptíveis, talvez causadores daquele espasmo.
O relacionamento poderia ser resumido no primeiro parágrafo: sexo, poucas conversas sobre amenidades
cotidianas – escolha do sabor da pizza, do filme, do canal de TV – e sexo. Nunca
concordavam, nem gostavam da escolha do outro, estavam sempre em direções
opostas. Mas iam-se alternando, sem crise, entre a calabresa e o atum, entre Velozes
e Furiosos e um Von Trier. Não havia futuro, não havia um casal, não haviam
cobranças para além do compromisso semanal da sexta-feira. O sexo era o motivo e o ponto alto dos encontros e do relacionamento, e diante dele todo o
resto era insignificante: naquilo concordavam.
Até aquele momento epifânico, ela nunca havia avaliado aquela relação nem os os sentimentos existentes. Lembrou-se do dia em que, durante uma discussão sem
sentido e por telefone, ele se disse apaixonado. Fora a única expressão de
algum sentimento, que ela não levara em conta, não sabe se por descrédito ou
por não querer aprofundar o assunto.
Percebeu então que aquele vento do trem na direção contrária foi a deixa poética que a fez perceber a falta de sentido daquele relacionamento que ocupava tanto espaço em sua vida (um dia inteiro, praticamente!). Despertou e deu-se conta do tempo que passara, de todos os trens indo e vindo, ‘da vida se repetindo na estação’. Levantou-se e instintivamente entrou no trem que acabara de parar. Não havia ninguém na plataforma para despedir. E tudo bem assim. “Cuidado com o vão entre o trem e a plataforma”, alerta a voz no alto-falante. Eu já sei, eu já sei...
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