Rindo na chuva

Naquele sábado ela saiu para almoçar e resolveu caminhar pelas ruas do bairro. Sem roteiro, sem rumo, virando à esquerda e à direita guiada apenas pela intuição e pela curiosidade de sempre. O céu anunciava que talvez fosse melhor deixar o passeio para outro dia tendo em vista a chuva que ele desaguaria sem dó nem piedade (ou seria por dó e piedade?) e ainda assim prosseguiu.

Caminhou por uns 20 minutos e a chuva então caiu numa chuverada gostosa. No início, apertou o passo, depois uma corridinha em busca de abrigo. Inútil  o esforço, o estrago era inevitável. E também pensou que era uma bobagem não aproveitar dessa dádiva de estarem ali, só ela e a chuva naquela rua. Desacelerou e continuou o passeio.

Como a alma estava feliz com o banho, se esforçava para espantar os pensamentos de “vou pegar leptospirose”, “vou ficar gripada”, coisas que a mãe sempre disse sobre andar na chuva. E nessa luta interna (a alma ainda ganhando de lavada das vozes da mãe) foi detida por um alagamento. E por fim, ganhou o receio de pisar em um buraco traiçoeiro no meio daquele lago. 

E na ilha em que se encontrava encontrou uma pequena marquise e ficou ali, espremidinha contra a parede, pedindo para que o lago não a alcançasse, rendendo-se às advertências da mãe gravadas em seus neurônios. A chuva ia diminuindo quando de repente pôde ouvir risos e uma música ao fundo. Parou um instante com seus pensamentos para tentar identificar de onde os sons estavam vindo. A marquise onde se protegia era de um comércio fechado e do outro lado daquela rua estreita havia um prédio antigo, desses de apenas três andares, um tanto escondido por uma frondosa árvore. Como o volume da chuva diminuíra ela podia então ouvir melhor e teve certeza de que as risadas vinham do prédio. Os galhos atrapalhavam um pouco a visão, mas uns dois passos para a esquerda e conseguiu um ângulo melhor. Identificou então o apartamento e viu um casal na janela do segundo andar. 

E lá estavam eles presumidamente nus já que podia ver os seios da mulher. Os dois riam, felizes e seus corpos dançavam grudados, numa dança desengonçada e sensual. Sentiu uma vontade enorme de registrar a cena, mas ficou com receio de que um movimento seu fizesse com que eles a percebessem e saíssem de cena. Filmou cada instante daqueles minutos, sorrindo pela felicidade que emanava daquela janela, tentando imaginar do que tanto achavam graça, se estavam embriagados, se tinham feito ou fariam sexo. E deu-se conta que a chuva tinha cessado. E como se a chuva  fosse o motivo da dança e dos risos, o casal também despareceu da janela. 

E ela ficou ali, orfã, com frio, esperando que eles voltassem. Ou talvez aguardando o lago desaguar para prosseguir seu caminho. 

E hoje, enquanto observava a chuva cair gostoso lá fora da janela da sala, lembrou daquele dia em quem tomou aquela chuva e descobriu aquele casal e sentiu saudades. Fechou os olhos e pôde reviver a cena, como na fotografia que nunca tirara, e como outras tantas, que guarda na caixinha das boas memórias. Pode ser que eles, o casal, não dêem mais risadas juntos. Mas ali continua chovendo e ainda há a esperança de almas lavadas, risadas à janela e jazz.


***

Dedicated to them



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